SERMÃO DE DIA DE RAMOS
Antônio Vieira Padre Alii autem caedebant ramos de arboribus, et sternebant in via(1).
I Como Deus não se agrada de afetos súbitos, senão de corações preparados, maravilhosas são as disposições cada vez maiores e mais estreitas, com que a Igreja Católica, nossa mãe, governada pelo Espírito Santo, de muito longe nos começou a preparar, e foi preparando sempre, para que chegássemos dignamente a este dia, e entrássemos como convém nesta sagrada semana. Para chegar ao Sancta Sanctorum, que era o lugar mais sagrado do templo de Jerusalém, traçou Deus a entrada com tal artifício, que primeiro se passasse por três estâncias, tão misteriosas no sítio como na medida, porque quanto eram mais interiores, tanto se estreitavam mais. A primeira e a segunda se chamavam átrios, e a terceira propriamente templo. Por estes como degraus de reverência e culto, e com todas estas disposições de sempre maior recolhimento e aperto, se chegava finalmente ao Sancta Sanctorum; e com as mesmas quer e ordenou a Igreja que entrássemos nós à Semana Santa, porque assim como o Sancta Sanctorum era o lugar mais sagrado do templo, assim a Semana Santa é o Sancta Sanctorum do tempo. As três estâncias que o precedem, e já passamos, tanto mais estreitas quanto mais interiores, foram, a primeira, desde a Septuagésima até a Quaresma; a segunda, do princípio da Quaresma até a Dominga próxima, chamada da Paixão; a terceira, da mesma Dominga da Paixão até o dia presente. Na entrada da Septuagésima se começaram a enlutar os altares, e cessaram no canto eclesiástico as aleluias, sendo esta cerimônia exterior o primeiro prelúdio ou reclamo da penitência, para que não dissolutos, mas compungidos, entrássemos no tempo santo da Quaresma. Começou a Quaresma com a memória da cinza e do pó que somos, e com o jejum universal; continuou com tanta freqüência de sermões, com tantas procissões de modéstia, compunção e piedade cristã, com tantas mortificações secretas e públicas, e com tanta efusão violenta do próprio sangue; e, não se dando por satisfeita com todas estas demonstrações, a Igreja, para maior representação de sua justa dor e tristeza, na dominga proximamente passada, correu totalmente as cortinas aos altares, e até as imagens sacrossantas de Cristo crucificado nos encobriu e escondeu com aquele véu negro, para que, eclipsado assim e escurecido o Divino Sol de nossas almas, chegássemos com maior assombro e santo horror aos dias em que somos entrados. Os antigos, como se lê em São Bernardo, chamavam a esta semana a Semana Penosa, pelos tormentos e penas que Cristo nosso Redentor nela padeceu, e pelo sentimento e dor com que nós as devemos corresponder e acompanhar. A Igreja universal lhe chama a Semana Maior, porque nela se consumaram os maiores mistérios de nossa Redenção, os maiores excessos do amor e misericórdia divina, e o maior e mais tremendo exemplo de sua justiça. Nós, em significação de todas estas coisas juntas, chamamos vulgarmente à mesma semana a Semana Santa, mas não sei se as nossas ações e exercícios nela respondem às obrigações de tão sagrado nome. Ora eu tão escandalizado do que algumas vezes acontece, como zeloso do que é bem se veja e reconheça em todos estes santos dias, o assunto que somente vos determino pregar hoje é este: que deve fazer todo o cristão para que a Semana Santa seja santa? A matéria, nem pode ser mais pia, nem mais útil, nem mais própria da ocasião, se aquele Senhor, que hoje chorou sobre a cidade de Jerusalém, puser seus divinos olhos na nossa, e nos assistir com sua graça. Peçamo-la por intercessão da Virgem Senhora, com tão devoto afeto de nossos corações, que a mereçamos alcançar. Ave Maria.
II Santo Agostinho, São Basílio e São Pedro Crisólogo comparam os quarenta dias da Quaresma aos quarenta dias do dilúvio universal. Naquele dilúvio esteve Deus quarenta dias chovendo castigos; neste está outros quarenta dias chovendo misericórdia. Mas somos os homens tão protervos, que nem por bem, nem por mal pode Deus conosco: os castigos não nos emendam, as misericórdias não nos abrandam. Barro, enfim. Assim como o barro se endurece com os raios do sol, assim nós com os favores do céu não nos abrandamos, antes nos endurecemos mais. O mesmo que lhes sucedeu àqueles antigos homens no primeiro dilúvio, nos acontece a nós neste segundo. Começou a chover o dilúvio de Noé: alagaram-se na primeira semana os vales e os quartos baixos dos edifícios; subiram-se os homens aos quartos altos. Choveu a segunda semana; venceram as águas os quartos altos, subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana: sobrepujou o dilúvio os telhados, subiram-se às torres. Choveu a quarta semana: ficaram debaixo das águas as torres e as ameias mais altas, subiram-se aos montes. Choveu a quinta semana: ficaram também afogados os montes, subiram-se finalmente às árvores, e assim estavam suspensos e pegados nos ramos. Postos neste estado os homens, já não tinham para onde subir, e não lhes restava mais que uma de duas: ou nadar, ou acolher-se à Arca, ou deixar-se afogar e perecer no dilúvio. Oh! se nos víssemos bem neste grande espelho! E quantos de nós estamos hoje no mesmo estado! Desde o princípio da Quaresma
começou Deus a querer-nos conquistar as almas, e nós sempre a retirar e a fugir de Deus de semana em semana. Passou a primeira semana da Quaresma, guardamo-nos para a segunda; passou a segunda, deixamo-nos para a terceira; passou a terceira, esperamos para a quarta; passou a quarta, dilatamo-nos para a quinta; passou a quinta, apelamos para a sexta; já estamos na sexta e na última semana deste dilúvio espiritual, já estamos, como os do outro dilúvio, com as mãos nos ramos das árvores, ou com os ramos das árvores nas mãos: Caedebant ramos de arboribus (2). Em dia de ramos estamos, e chegados a este dia e a esta semana precisa, em que não há já para onde retirar, que é o que nos resta? Ou afogar e perecer, ou resolver e nadar para a Arca. Os daqueloutro dilúvio não podiam nadar nem salvar-se na Arca de Noé, uns porque estavam muito longe, outros porque não sabiam dela, e todos porque a Arca não tinha mais que uma porta, e essa estava fechada por fora, e tinha Deus levado as chaves, como diz o texto. Cá no nosso dilúvio não é assim. O Noé é Cristo, Salvador e reparador do mundo, e a Arca em que salvou o gênero humano é a sua cruz. Assim lhe chama a Igreja no hino corrente deste tempo: Atque portum praeparare Arca mundo naufrago. O antigo Noé não tinha porta por onde recolher os que se quisessem valer da Arca; mas o nosso Noé divino está com cinco portas abertas, e abertas em si mesmo, para recolher e salvar todos os que se quiserem valer dele e de sua cruz. Oh! que diferente dilúvio é este daquele! Naquele morreram todos os homens, e salvou-se só Noé; neste morreu e afogou-se só o divino Noé: Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me (3), para que todos os homens se salvem. Os que pereceram naquele dilúvio são os que não se quiseram persuadir, e se foram dilatando até que não tiveram remédio. E será bem que nós, chegados a este dia, ainda nos dilatemos mais, e pereçamos como eles? Perecer não, cristãos, pelo que nos merece o amor de Cristo e suas santíssimas chagas. Aproveitemo-nos ao menos destes poucos dias da Semana Santa, já que dos de toda a Quaresma nos não soubemos aproveitar. Diz São Basílio Magno que os anjos de cada cidade, desde o princípio da Quaresma, vão escrevendo em um livro os que jejuam e os que não jejuam. Assim como os párocos no mesmo tempo tomam a rol todos os fregueses, para lhes pedirem conta da confissão e comunhão, assim o fazem os anjos para a tomarem do jejum. Mas além destes dois livros, ainda há outro terceiro, de que muito mais dificultosamente nos havemos de desobrigar. E que livro é este? É o que vedes naquele altar. O primeiro livro é o do pároco, o segundo o do anjo, o terceiro o de Cristo. Em todos os dias da Quaresma nos manda Cristo ler um novo Evangelho — o que não se faz nos outros dias do ano — e por este diário da doutrina havemos de ser também examinados todos os que nos chamamos cristãos. Ouvi ao profeta Davi, falando deste livro em nome da Igreja universal, que daquele altar e desta cadeira nos lê estas lições tão mal aprendidas: Imperfectum meum viderunt oculi tui, et in libro tuo omnes scribentur: dies formabuntur et nemo in eis (Sl. 138, 16): Os vossos olhos, Senhor, — diz a Igreja — vêem as minhas imperfeições, isto é, as imperfeições daqueles de que eu me componho, que são os cristãos; todos se escreverão no vosso livro; formar-se-ão os dias, e ninguém neles. O lugar é escuro, mas admirável. Que tenha Deus livro em que se escrevam os defeitos e pecados de todos, e os nomes de todos os que os cometem, e os dias em que se cometem, é coisa muito sabida e vulgar nas Escrituras. Mas que dias são estes que se chamam formados, e nos quais ninguém se acha: Dies formabuntur, et nemo in eis? São propriissimamente os dias da Quaresma, em cada um dos quais nos propõe Cristo uma forma particular do Evangelho, pela qual forma, como por exemplar e idéia de nossas ações, nos devemos nós também formar e reformar, que esse é o intento deste tempo santo. E porque geralmente ninguém se reforma nem conforma com o que se lhe propõe no Evangelho daquele dia, por isso diz o profeta que os dias se formam, e ninguém se acha neles: Dies formabuntur, et nemo in eis. De sorte que o nemo refere-se ao formabuntur como se dissera: Dies formabuntur et nemo in eis, idest, formabuntur Os dias dão a forma, e ninguém se conforma com ela, porque, sendo a forma de cada Evangelho ordenada cada dia à reformação de cada vício, em vez de se ver a emenda e reformação, continuam as mesmas deformidades, e pode ser que maiores. Oh! se aqui aparecera agora este livro como está notado e cotado na mente divina, se se abrira este livro diante de todos, e se começara a ler publicamente o que cada um fez ou deixou de fazer nesta Quaresma, que vergonha havia de ser, e que confusão a de muitos, quando se fossem confrontando dia por dia a forma dos Evangelhos e a deformidade das vidas! Veio um primeiro dia da Quaresma, veio uma Quarta-feira de Cinzas, pôs-nos a Igreja diante dos olhos não só a memória, senão a mesma morte, e quantos houve que mudassem de vida? Veja-se o livro neste dia: Dies formabuntui; et nemo in eis. Passou o dia, e ninguém se achou escrito nele. Continuamos na mesma vida, como se ela nunca houvera de acabar, e tão esquecidos da conta, como se Deus no-la não