HOJE SOU UM
Personagens
Dourado, rei de...
Eleutério, seu Ministro,
Matildes, a rainha
Fernando e Carlos, guardas
Eulália e Tibúrcia, damas do Paço
4 Oficiais
Criado
Soldado da Guarda Imperial
ATO PRIMEIRO
CENA PRIMEIRA
O REI - (para o Ministro) Já deste as providências que te recomendei ontem sobre os indigitados para a nova conspiração que contra mim se forja!?
MINISTRO - Não me foi possível, Senhor, pôr em práticas vossas ordens.
O REI - Ludibrias das ordens de teu Rei? Não sabes que te posso punir, com uma demissão, com baixa das honras, e até com a prisão!?
MINISTRO - Se eu referir a V. M. as razões ponderosas que tive para assim proceder, estou certo, e mais que certo que V. M. não hesitará em perdoar-me essa que julga uma grave falta; mas em verdade não passa de ilusão em V. M.
O REI - Ilusão! Quando deixas de cumprir ordens minhas?
MINISTRO - Pois bem, já que V.M. o ignora, eu lhe vou cientificar das cousas, que me obrigaram a assim proceder.
O REI - Pois bem: refere-as; e muito estimarei que me convençam e persuadam de que assim devemos proceder.
MINISTRO - Primeiramente, saiba V . M. de uma grande descoberta no Império do Brasil, e que se tem espalhado por todo o mundo cristão, e mesmo não cristão! Direi mesmo por todos os entes da espécie humana!
O REI (muito admirado) Oh! Dizei; falai! Que descobriram - é erro!?
MINISTRO - É cousa tão simples, quanto verdadeira:
1.ª - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como V. M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro! Pelo procedimento do Povo, e desses a quem V. M. chama conspiradores persuadi-me do que acabo de ponderar a V.M.
2.ª - Que pelas observaç5es filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança. Vemos por exemplo um indivíduo colocado no cargo de presidente de uma Província; velho, carregado de serviços; com títulos, dignidades; e mesmo exercendo outros empregos de alta importância ter medo, Senhor: não poder abrir a boca diante de um homem considerado talvez pelo Povo, sem um emprego pessoal, sem mulher, talvez mesmo sem o necessário para todas as suas despesas, finalmente um corpo habitado por uma alma. Que quer dizer isto, Senhor? Que esse sobrecarregado de cargo e dignidades humanas é zero perante este protegido ou bafejado das dignas leis Divinas. Eu, pois, ontem estava tão acima de Vossa Majestade, porque sentia em mim o dever de cumprir uma missão Divina, que me era impossível cumprir ordens humanas. Podeis fazer agora o que quiserdes!
O REI - Estou pasmo - com a revelação que acabo de ouvir. Se isto se verifica, estou perdido!
MINISTRO - Não temais, Senhor... Todo o Povo vos ama, e a Nação vos estima; mas desejo que aprendais a conhecer-vos, e aos outros homens. E o que é o corpo e a alma de um ente qualquer da espécie humana: isto é, que os corpos são verdadeiramente habitaç5es daquelas almas que a Deus apraz fazer habitá-los, e que por isso mesmo todos são iguais perante Deus!
O REI - Mas quem foi no Império do Brasil o autor da descoberta, que tanto ilustra, moraliza e felicita - honrando!?
MINISTRO - Um homem, Senhor, predestinado sem dúvida pelo Onipotente para derramar esta luz divina por todos os habitantes do Globo que habitamos.
O REI - Mas quais os seus princípios, ou os de sua vida?
MINISTRO - É filho de um professor de primeiras letras; seguiu por algum tempo o comércio; estudou depois, e seguiu por alguns anos a profissão de seu Pai, roubadO~lhe pela morte, quando contava apenas de 9 a 10 anos de idade. Durante o tempo do seu magistério, empregou~Se sempre no estudo da História Universal; da Geografia; da Filosofia, da Retórica - e de todas as outras ciências e artes que o podiam ilustrar. Estudou tAMbém um pouco de Francês, e do Inglês; não tendo podido estudar também - Latim, conquanto a isso desse começo, por causa de uma enfermidade que em seus princípios o assaltou. Lia constantemente as melhores produções dos Poetas mais célebres de todos os tempos; dos Oradores mais profundos; dos Filósofos mais sábios e dos Retóricos mais brilhantes ou distintos pela escolha de suas belezas, de suas figuras oratórias! Foi esta a sua vida até a idade de trinta anos.
O REI - E nessa idade o que aconteceu? Pelo que dizes reconheço que não é um homem vulgar.
MINISTRO - Nessa idade, informam-me... isto é, deixou o exercício do Magistério para começar a produzir de todos os modos; e a profetizar!
O REI - Então também foi ou é profeta!?
MINISTRO - Sim, Senhor. Tudo quanto disse que havia acontecer, tem acontecido; e se espera que acontecerá!
O REI - Como se chama esse homem!?
MINISTRO - Ainda não vos disse, Senhor, - que esse homem viveu em um retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas em quarto, a que denomina E... ou E... de. .. E aí acrescentam que tomou o titulo de Dr. C... s.... - por não poder usar o nome de que usava - Q... L..., ou J... J... de Q. .. L..., ao interpretar diversos tópicos do Novo Testamento de
N. s. Jesus Cristo, que até aos próprios Padres ou sacerdotes pareciam contraditórios!
O REI - Estou espantado de tão importante revelação!
MINISTRO - Ainda não é tudo, Senhor: Esse homem era durante esse tempo de jejum, estudo, e oração - alimentado pelos Reis do Universo, com exceção dos de palha! A sua cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam às dos Reis de que se alimentava, e destes recebia outros. Era como o coração do mundo, espalhando sangue por todas as suas veias, e assim alimentando-o e fortificando-o, e refluindo quando necessário a seu centro! Assim como acontece a respeito do coração humano, e do corpo em que se acha. Assim é que tem podido levar a todo o mundo habitado sem auxílio de tipo - tudo quanto há querido!
O REI - Cada vez fico mais espantado com o que ouço de teus lábios!
MINISTRO - É verdade quanto vos refiro! Não vos minto! E ainda não é tudo: esse homem tem composto, e continua a compor, numerosas obras: Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer assunto; finalmente, bem se pode dizer - que é um desses raros talentos que só se admiram de séculos em séculos!
O REI - Poderíamos obter um retrato desse ente a meu ver tão grande ou maior que o próprio Jesus Cristo!?
MINISTRO - Eu não possuo algum; mas pode se encomendar ao nosso Cônsul na cidade de Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Sul, em que tem habitado, e creio que ainda vive.
O REI - Pois serás já quem fará essa encomenda!
MINISTRO - Aqui mesmo na presença de V . M. o farei. (Chega-se a uma mesa, pega em uma pena e papel, e escreve:)
"Sr. Cônsul de...
De ordem de Nosso Monarca, tenho a determinar a V. Sa. que no primeiro correio envie a esta Corte um retrato do Dr. Q... S..., do maior tamanho, e mais perfeito que houver.
Sendo indiferente o preço.
O Primeiro Ministro
DOUTOR SÁ E BRITO"
Corte de..., maio 9 de 1866.
(Fechou, depois de haver lido em voz alta; chama um criado; e manda por no correio - para seguir com toda a brevidade, recomendando.)
ATO SEGUNDO
A RAINHA E SUAS DAMAS - (entrando) Não é esta, Senhor (para o Rei) a primeira vez que sabendo haverdes querido encadear ou condenar à morte homens a quem julgo inocentes, venho perante vós impetrar o seu perdão! Chegou ao meu conhecimento que desconfiastes da fidelidade de vossos maiores e mais sábios Amigos, Henrique e Gil Gonzaga! É por estes sábios vassalos, e que tantas vezes têm ocupado os mais importantes cargos do Estado, que vos venho pedir; é a liberdade, ou não perseguição de suas pessoas que desejo!
O REI - Bem conheço, Senhora, o interesse que tomais em tudo quanto diz respeito à minha, à vossa e à felicidade do Estado que por herança ou Vontade Divina - governo: ora com sábios conselhos; ora com vossas felizes lembranças; ora com as mais justas - vossas reflexões! Estais portanto servida, Senhora, em vosso pedido; mesmo que o não fizésseis, a conversação que acabo de ter com um dos nossas mais distintos políticos, e atualmente na primeira pasta do Governo, seria bastante para perdoar a esses, de quem tive denúncia de que conspiram contra o nosso Governo!
A RAINHA - Quanto me apraz, Senhor, ouvir de vossos lábios, doces e salutares palavras! Estou tranqüila, e volto feliz aos trabalhos em que sempre me costumo ocupar! (Para o Ministro:) Senhor Ministro, continuai com vossos sábios conselhos a ilustrar vosso Grande Rei, e contai sempre com a proteção de vossa assaz afetuosa Rainha! (Sai com as Damas.)
OS GUARDAS - (entrando) Senhor! Senhor! (Fatigados e cheios de temor) Aproximam-se de nossas praias alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação com que estamos em guerra! Houveram alguns tiros entre os de guerra Nacionais e esses que se aproximam de nossa barra: é portanto mister pôr tudo em armas para repelir a audaz invasão!
O REI - (para o Ministro) É preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim de que não sofra a cidade o menor mal! Escrevei já as seguintes ordens para o General comandante da Guarnição: (o Ministro senta-se e escreve) De ordem de s. M. nosso Rei, determino a V. Exa. que imediatamente ponha em armas, e pronta para repelir qualquer tentativa estrangeira, toda a tropa que faz a guarnição desta cidade! Mande tocar tambores pelas ruas para que se reúna não só toda a Guarda Nacional ativa, como também a reserva, dividida toda a tropa em colunas por todo o litoral da cidade, principalmente por suas praias mais vulneráveis, ou despidas de Fortalezas! (O Rei entrega o ofício a um, sai acompanhado de Guardas e volta imediatamente.)
O MINISTRO - (para outro) Parte imediatamente (depois de haver feito outro ofÍcio), leva este à Fortaleza da Laje; dizei ao respectivo Comandante que igual resolução comuniquei a todos os outros comandantes! (Sai o Guarda. [O Ministro] para o Rei:) Peço licença a Vossa Majestade para ir em pessoa dar as mais providências que em tão melindrosas circunstâncias são necessárias.
O REI - Vai, e não te demores a vir dar-me parte do que ocorre; pois se for necessário, quero ir eu mesmo em pessoa, com a minha presença, animar as tropas; exortar o Povo; e fazer, como me cumpre, quanto em mim cabe em proveito dele, e da Nação! (O Ministro parte.)
O REI - (passeando) Por mais saber que se tenha; por mais previdente que seja um monarca; por mais
devia ter sido apresentado a V. M. ao meio dia!
A RAINHA - Eu não trato, nem tenho disposição, ainda, disso; vamos. (Saem.)
ATO TERCEIRO
O REI - (distribuindo prêmios aos numerosos guerreiros que o auxiliaram no triunfo dos combates; conversando ora com um, ora com outro) Eis, Senhores, a recompensa daqueles, que sabem cumprir bem seus deveres, defendendo os interesses da Pátria, e com eles suas próprias fortunas. Estes recebem o saboroso prêmio de suas fadigas; a recompensa de seus trabalhos. Assim como os usurpadores recebem a morte, e tudo o mais que os pode inutilizar e destruir, quando tentam roubar, matar, ou de qualquer outro modo apossar-se, e fruir os bens que só a outrem pertencem, que só a outrem é permitido gozar! (Pegando uma medalha, e pendurando ao peito de um oficial-general:) Eis como revelarei ao Mundo a tua coragem e valentia. (Pondo outra em outro:) Eis com que despertarei no espírito de vossos concidadãos, a lembrança de milhares de cadáveres, com que a meu lado fizestes juncar o campo da batalha. (Pondo em outro:) Eis a prova mais evidente de meu amor por aqueles que me auxiliam no mais importante cargo que se pode exercer sobre a Terra o de governar os Povos, bem como do reconhecimento de vossos raros merecimentos! (Para outro:) É quanto basta para que o Mundo vos olhe com respeito; vossos Irmãos de armas com prazer, se não com emulação. (Pegando em umas caixinhas:) As gratificações que dentro encontrardes (dando a um dos oficiais) deveis cada um de vós entregar aos oficiais superiores e subalternos, que debaixo do meu e do vosso comando praticaram atos da maior bravura e valor. Para os soldados, outras distinções serão feitas, que atestam por toda a sua vida seus meritórios serviços; a recompensa da Pátria; e o afeto e gratidão do Rei! Transmiti-lhe entretanto este apertado abraço que a todos vós dou. (Abraça os quatro oficiais.)
ELES - (beijando a mão) Gratos e reconhecidos aos altos, nobres e elevados sentimentos de Vossa Majestade, protestamos perante Vós, Deus e as Leis, (arrancando um pouco as espadas) desembainharmos... (arrancando todas) estas espadas e com elas - defender-vos e a Nossa mais que todas virtuosa Rainha, fazendo cair cadáveres quantos se lhe opuserem; ou cairmos por terra banhados em nosso próprio sangue. (Fazem profunda reverência, e saem.)
A RAINHA - (e um pouco depois as Damas, entrando apressadamente e atirando-se nos braços do Rei) Meu querido esposo, quanto me fizeste pensar sobre a tua existência, sobre o teu futuro! Sobre a paz e felicidade do nosso Reino! (Desprendendo-se mui devagar de seus braços:) Sim, caro amigo! Quando milhares de feras tentavam lançar-nos talvez fora de nossos territórios deles se apossarem, destruir nossos bens, aniquilar nossa Pátria e fazerem destarte a desgraça geral não era para menos que para sentir-se o maior receio por tantos males de que nos achávamos ameaçados. Felizmente houve um triunfo completo. Os mares repletos de cabeças, de corpos que boiavam dos nossos inimigos, como se uma peste houvesse destruído a vida de milhares de peixes, como algumas vezes havemos observado. Na península em que tentaram um desembarque, eram tantos que bem se podia dizer que era um matadouro público de carneiros para alimentar uma grande cidade. Felizmente, viveremos, continuaremos a viver tranqüilos e felizes!
O REI - É tudo isso verdade minha muito querida esposa. Agora. porém, só nos cumpre continuar a velar sobre quanto diz respeito aos interesses públicos d'outra ordem. Eu continuarei a pensar; a meditar; a estudar; a cogitar quanto possa fazer a felicidade dos homens. Tu que és mulher, de igual modo procederás a respeito das de teu sexo. Combinaremos depois, e todos os dias por duas horas pelo menos de cada um, sobre tais assuntos; o que for julgado melhor, isso se porá em prática.
A RAINHA - Com muito prazer vos acompanharei em vosso modo de pensar e futura disposição. São horas de descanso, não quereis acompanhar-me?
O REI - Tenho ainda alguma cousa a fazer nesta sala. Não estou bem certo do que é; porém sei que me falta não sei o quê.
A RAINHA - Vede o que é; e se eu vos posso auxiliar.
O REI - Não me recordo; iremos portanto dar um passeio ao jardim, e depois se me lembrar voltarei. Ah! agora me lembro: é o rascunho da participação que cumpre fazer a todos os governadores que nos auxiliam em nosso importante Governo. (Senta-se; pega a pena, e escreve:) "Meus muito amados súditos e Governadores das diversas Províncias do meu importante Reino! Participo-vos, e sabei que quase inesperadamente fui surpreendido por numerosos traidores, ladrões e assassinos, mas que em um dia, hoje cercado dos meus generais e dos mais valentes, denodados soldados, obtive o mais completo triunfo sobre eles. É sempre a Providência Divina que auxilia nossas Armas e que, se por alguns momentos, como para experimentar a nossa crença, nos envia alguns flagelos, estes desaparecem logo, como as sombras da noite aos raios da loura Aurora. Publicai este fato glorioso de nossos concidadãos; de nossa fé; de nossa religião;. de nossa moral; e de nossa valentia. E conservai-vos, como sempre, no desempenho tão honroso, quão importante do Governo que vos conferiu O vosso Rei Q... s, - m. - Palácio das Mercês,